quarta-feira, 18 de agosto de 2010

RAIMUNDA E PEDRO: CAMINHO DA ROÇA

Residindo na Trindade, minha irmã e seu marido, meu primo Raimundo, integraram-se aos afazeres gerais da família: na casa, na roça e no engenho.
A luta da roça tinha início com a derrubada e broca do mato; a queima e a limpeza (coivaramento) de resíduos; operações, geralmente, realizadas entre setembro e outubro de cada ano. Seguia-se o plantio, principalmente, de arroz e milho; depois, de janeiro a março, a capina. A colheita, geralmente, ocorria entre março e maio.
De modo geral, cedo os homens partiam para a roça e só retornavam à tardinha. O almoço lhes era levado ao meio dia. Eles almoçavam numa cabana improvisada ou embaixo de alguma árvore frondosa da beira do roçado onde, geralmente, mantinham alguma cabaça com água potável e pedra de amolar facão.
Raimunda, muitas vezes, era a responsável por fazer chegar até eles o precioso alimento condicionado numa grande bacia de alumínio amarrada em pano de prato.
Geralmente, eu era convocado para lhe ajudar a carregar o almoço, fazendo-lhe companhia na caminhada, às vezes, longa e difícil.
Certa vez, levavamos o almoço ao pessoal que trabalhava na roça, para o lado do Brochado, região de várzea do rio Mearim, bastante afastado de casa. Eu ia à frente, Raimunda me seguia, cada um com sua bacia de alimento acomodada numa rodilha de pano sobre a cabeça.
Iamos apressados quando, de repente, uma enorme cobra caninana, colubrídeo (Spilotes p. pullatus), surgiu aos meus pés. Gritei e dei um enorme salto para trás, atirando a bacia de comida sobre Raimunda. A beirada da bacia machucou-lhe a boca, quase quebrei-lhe os dentes. E não é preciso dizer como foi que ficou a comida depois desse tombo. Misturou-se tudo dentro do pano: arroz, feijão, galinha assada, torresmo e outros complementos.
Ainda bem que ficou tudo dentro do pano e foi possivel aproveitar.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

ÉS CURADO DE COBRA ?



Espada velha (uma cobra no caminho): pé-de-dorna, cachaça e veneno.

Na minha terra (Pedreiras do Maranhão), em meados do século passado, no caminho Pedreiras-Trindade, alternativa rua dos Doidos-Altamira, certa vez, passei por um teste perigoso. 
Era final da temporada das chuvas, provavelmente, abril ou maio, ocasião dos preparativos para dar início à moagem da cana e a produção de melado, aguardente, rapadura e açúcar, atividades principais da estiagem, na região.

A história começa assim
Meu Pai (José Bello), meu irmão Antônio e eu, regressávamos de Pedreiras para a Trindade, por aquele caminho tortuoso, conduzindo um animal com preciosa carga: o "Pé-de-Dorna", um tipo de garapa azeda obtida por meu pai no engenho do Sr. João Rosa, situado nos arredores de Pedreiras.
Este material destinava-se à fermentação do caldo-de-cana para produção de aguardente no engenho de meu pai, na Trindade. 
Caminhávamos em fila, atrás da mula: Antonio, eu e, por fim, meu Pai. Ali, naquele trecho de caminho do Altamira, havia um tronco de pinhão-roxo cortado, deitado ao chão, medindo de 20 a 30 cm de diâmetro. Escondida por baixo do troco estava uma cobra cinzenta, venenosa, identificada como sendo uma “Espada-velha”. 
Creio que despertou com os primeiro caminhantes e quando chegou minha vez de cruzar o tronco ela deu o bote, picando meu dedo indicador do pé esquerdo. Tomei um susto danado quando senti arder o dedo vi a cobra. 
Comecei a pular desesperadamente, tentando sair daquela situação. Quando, finalmente, consegui libertar-me, meu pai quis matar a cobra porem, ela já estava morrendo. Creio que, movido pelo pavor, a matei pisoteada. 

Resultado: meu pai espremeu o local da picada, mandou-me menter o pé na lama para lavar o veneno. 
Depois, ele queria passar pela casa do Alves, um Sr. curado de cobra, para pedir-lhe o remédio definitivo: uma cuspida na boca para matar o veneno da cobra. 
Eu me dispus a atolar o pé em todo lamaçal do caminho, para não me submeter à tortura da cuspida. 
Que remédio louco !... 
Felizmente, não tive problema. 
Daí por diante, passaram a crer que eu seria mais um privilegiado, curado de cobra, podendo, tambem, cuspir e curar.
O mais provável é que, naquela ocasião, a Espada velha estivesse tirando uma sesta, após uma refeição, ocasião em que fica desprovida de veneno, segundo dizem alguns.
Devo acrescentar que, quando ainda criança, aprendi uma oração para proteção contra picada de cobra, nos seguines termos:: "São Bento, Agua Benta, Jesus Cristo no Altar, abaixa tua cabeça cobra, deixa, em paz, o nosso povinho passar".


segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Raimunda Furtado Leite: Alguns Traços Históricos

Informes iniciais: Conforme pesquisas, Raimundo significa protetor ou sábio, pessoa muito rigorosa consigo mesma, com tendência a isolamento e a supervalorização das virtudes de outrem. Quando consciente de sua importância, pode tornar-se conselheiro e sustentáculo. Dizem ser palavra de origem francesa: do gótico "protetor, poderoso". No entanto, outros acreditam que a palavra provém de Ramiro, nome de origem alemã, de onde deriva Radamir, cujo significado é: "conselheiro ilustre, famoso". Derivando Raimón = Raimundo.

Local de Nascimento: Raimunda Furtado Leite nasceu em Pedreiras (Ma), no bairro "Anjo da Guarda" (?), em 4 de agosto de 1924, casou-se em 1939, com 15 anos de idade, com Raimundo Cesário Cruz, seu primo em primeiro grau, tendo falecido em 30 de agosto de 1964.

O Casamento: Segundo informações colhidas junto a vários familiares, o casamento ocorreu de modo singular. Os primos namoravam e tinham intenção de realizar um casamento que, por precoce, provavelmente, seria contrário à vontade dos pais. Por isso, planejaram fugir e por em prática seus intentos. Entretanto, o pai da jovem, tendo se deslocado da Trindade à Pedreiras para participar da missa dominical, lá, tomara conhecimento do plano dos jovens e, quando regressou, passou pelo Altamira para acertar as coisas. Deve ter havido uma conversa amistosa com a filha que culminou na aprovação do seu casamento. Certamente, conviria mais a ele um casamento precoce do que o vexame da fuga de dois jovens embevecidos de amor.

Localidade Altamira: Viajando de Pedreiras para a Trindade, trilhei muito pelo caminho que passa por esta localidade, quase uma trilha de roça, cortando morros e vales lamacentos povoados de palmeirais. E lembro-me bem da linda propriedade chamada Altamira. Nela havia uma bela casa, provavelmente remanescente de antiga fazenda de escravo, cercada de fruteiras, numa colina, afastada cerca de 500 metros do caminho geral. O acesso era feito por uma cancela e um corredor de cercas onde podiam ser vistos alguns exemplares senis da elegante palmeira-real, provavemente, plantados por escravo, na segunda metade do século XIX.

A Festa do Casamento: Dizem que a festa do casamento ocorreu no Altamira, na casa de tio Joaquim Cesário Cruz (Quinco Cesário), o pai do noivo, tio da noiva, propriedade situada no caminho da cidade, entre as terras dos Cardosos e Augustinhos, integrada à planície do importante Igarapé da Agricultura (1) que irriga as terras de meu padrinho Bello Xavier.

Meus pais aprovaram o casamento porém, não participaram. Fizeram-se representar por minha irmã Maria e seu esposo Manoel Martins dos Santos (Nezinho).

Onde Residiram: Não tenho informação sobre o local de residência do novo casal durante os dois primeiros anos de vida conjugal, provavelmente lá mesmo no Altamira. O certo é que, em outubro 1941, residia na Trindade, numa antiga casa, à beira do riacho, onde foram construídas nossa residência definitiva e a nova casa de engenho, após o incêndio da casa da colina, do lago.

Nascimento de Inácio: Tenho lembrança de que, ali, nasceu o primeiro filho de minha irmã Raimunda, Inácio Cesário Cruz. Naquele dia, com pouco mais de 3 anos de idade, eu não sabia o que estava acontecendo do lado interno daquela casa cercada de mangueiras e laranjeiras, naquela beira de caminho do rio Mearim. Era um grande alvoroço, corre-corre, pra dentro e pra fora, e ninguém me dava qualquer explicação. Crianças não podiam chegar perto. Amedrontadas, eram afastadas dali sem qualquer explicação sobre o que se passava na casa.

Segunda Lembrança Mais Antiga: Creio que esta deve ter sido a minha segunda lembrança mais antiga, visto que a primeira, foi aquela em que meu pai salvou-me de entre os chifres dos bois Moreno e Azulão.

Seria um Novo Incêndio ?: Eu já havia presenciado a correria de um incêndio. Aquele que destruíra nossa casa da colina, acontecimento guardado apenas em meu subconsciente, pois confesso que não lembro absolutamente nada dele. Estaria ocorrendo, ali, outro incêncio ...?

Felizmente, não se tratava disto mas, dos preparativos para a chegada do meu sobrinho Inácio.

O Nome e a Promessa: O nome Inácio fora dado ao recém-nascido, segundo fui informado, para assegurar-lhe a sobrevivência, tendo em vista que três outras crianças nascidas anteriormente, não haviam sobrevivido.

Pesquisas apontam que Inácio significa ardente e indica uma pessoa vivaz e inteligente que, em geral, amadurece com as dificuldades. Supera obstáculos com bom humor e perseverança. Há quem atribua ao nome Inácio origem etrusca. O fato é que, na história, aparece registrado como sobrenome pelos antigos romanos.

Relatos de Sinhara e Judite:

A seguir, apresento um relato elaborado por minhas irmãs Judite e Sinhara sobre esta matéria: "Primeiro vamos falar sobre a nossa casa na trindade, a 1ª casa foi queimada em 1940 + ou - em dezembro. Depois que a casa queimou, fomos morar na casa do engenho no mesmo lado do lago, o caminho ficava no meio entre a queimada e o lago. Perto da casa do engenho tinha um caminho que ia até o brochado (2). Nezinho morava no mesmo lado, em uma lombada, antes da casa do engenho velho; de lá, ele via o fogo e foi ajudar a apagar. Os moradores da Trindade, ao ouvirem a zoada do fogo na casa, pensavam que era barulho de avião, algo difícil de se ouvir, na época. Somente após se haver espalhado a noticia os moradores correram e, certamente, ainda puderam ajudar no salvamento. Foi aproveitado apenas um pouco do milho e do arroz. Na casa do engenho não dava para morar, então o Pai comprou uma casa do Sr. Alípio. Ela ficava próxima ao terreno onde ele construiu, posteriormente, a morada definitiva. Uma bela casa de taipa, coberta de telha".

"Sobre Raimunda: ela não chegou a fugir. Pai havia vindo a Pedreiras onde ouviu boatos afirmando que Raimundo Quinco iria roubá-la, e que o Pai dele estava de acordo. Nosso Pai passou lá, no Altamira, e declarou que não precisavam roubá-la. Afirmando que, mesmo contra sua vontade, iria aceitar o casamento e, gostaria que o mesmo fosse realizado logo.

Quando ela casou, ficou morando em Altamira, logo ficou grávida e acabou perdendo (sofreu um aborto) com poucos meses, depois do 2º aborto ele mudou para a Trindade, para a casa da beira da estrada, perto da bagaceira do engenho. Ele foi trabalhar no engenho do sogro. Houve o 3º aborto. Então aconselharam que ela deveria fazer uma promessa com Santo Inácio para não mais perder as crianças. A promessa era assim: o primeiro filho que nascesse vivo e de tempo normal se chamaria Inácio. Feita a promessa, a gestação transcorreu normal, a criança nasceu em paz e recebeu o nome Inácio, como prometido. Dai por diante, nasceram-lhe e foram criados mais 12 crianças.

OBS: conforme prometido, são palavras da minha mãe Judite e da tia Sinhara....um abraço....Janaina.

(1) O nome indica que a extensa planície cortada por este grande Igarapé suportou, por longo tempo, um avançado e produtivo projeto agrícola. Aquele campo agrícola foi abandonado e tomado pela vegetação secundária, especialmente, de assa-peixe e cambará-chumbinho. Enfeitando algumas cercas próximas ao povoado dos Bellos havia, ainda, alguns pés de eucalipto (árvores enormemente longas e retilíneas), testemunhas vivas dos áureos tempos daquele empreendimeto rural.

(2) Uma região de lagos, planície inundável do rio Mearim, onde se faziam as plantações de vazantes, especialmente de melancia e melão

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Morada provisória e a nova residência


Mudança para o galpão: A vida precisava continuar. Então, juntou-se o que havia sobrado do incêndio e fomos residir provisoriamente no galpão do engenho, na baixada, mais próximo ao lago. Neste galpão, ficamos abrigados durante o tempo que foi necessário à construção da nossa nova residência.
Não me contaram por quanto tempo, ficamos no galpão da beira do lago, convivendo diretamente com o barulho, a poluição, o cheiro de engenho e a luta diária dos tralhadores.
A Nova residência: Ela foi erguida em local bem mais afastado do lago, num aplainamento feito no sopé de uma colina, tendo à frente larga planície por onde serpenteava respeitável igarapé. Havia um amplo terreiro por atrás da casa e, um barranco elevado mostrando o barro amarelo-pardacento daquele importante prolongamento do relevo do Morro da Trindade. Estas elevações eram quase totalmente cobertas por vegetação florestal que foi conservada por meu pai durante todo o tempo em que ali residimos. Na orla da floresta, foram plantadas algumas limeiras cujos galhos debruçavam-se sobre o barranco e serviam de refúgiol, especialmente, para porcos e galinhas, nas horas de sol forte.
Foi esta residência que me viu crescer. Ela tornou-se a minha casa-mãe, que aprendi a amar e a conhecer, em todos os seus detalhes, compartimentos, móveis e utensílios. Cada sala, cada quarto, cada espaço tem uma história que me vincula e emociona. Foi meu lar amigo durante cerca de 12 ano, até quando nos mudamos para Pedreiras, por volta de 1952/1853.
(vai cont...)

TRÁGICO FIM DA NOSSA CASA NA COLINA DA TRINDADE




Fogo na Residência: Creio que vivíamos no final de 1939 ou início de 1940, ocasião em que a produção já havia sido recolhida ao celeiro. Os paióis estavam repletos de arroz (amontoado em cacho) e milho ( em espiga).
A luta da familia continuava, quando ocorreu o desastroso incêndio de nossa casa, marcando profundamente a vida de todos nós.
Tudo ocorreu por conta de um inconveniente ninho de inseto, uma casa de maribondo "enxu" muito comum na região. (Inseto himenóptero, vespídeo (Polybia scutellaris), de coloração preta, com dois traços amarelos, transversais, quase unidos, no meio do dorso. Constrói o ninho, esférico, com quase dois palmos de diâmetro, nos beirais das casas ou nas janelas).
Um grande ninho foi construído na cumeeira de nossa casa e sua rica produção de mel passou a “adoçar” e a agitar a dormida de meus pais, especialmente, de minha mãe, subtraindo-lhes o merecido repouso.
A mãe já havia solicitado providências a meu pai a respeito daquele meloso vizinho. Porem, suas múltiplas responsabilidades ainda não lhe haviam permitido solucionar o tal problema. Como minha mãe não era muito de esperar, resolveu tomar providência.
Ela já havia visto Nezinho, seu genro, realizar uma operação dessas.
Foi numa bela manhã ensolarada de domingo, após uma daquelas noitadas chuvosas de matar sapo, muito comuns na região, que ela deliberou o audacioso e inflamado evento.
Meu pai havia saído muito cedo, acompanhado de meu irmão Antônio, a fim de comprar os suprimentos semanais, na cidade. Na casa, estavam apenas duas pessoas adultas: ela própria e sua filha mais velha, Maria.
Trabalhava também com meus familiares, na ocasião, o Pedro Martins, um irmão de Nezinho, que sofreu muito com o paludismo. Era um jovem alegre e brincalhão. Quando chegava da roça, para o almoço, ao entrar na casa da colina, citava passagens bíblicas para minha mãe: "Dona Conceição, dá de comer a quem tem fome" ! Também este havia ido à cidade naquele dia.
Meu irmão Sinhô, cerca de 12/13 anos de idade, único homem da casa, naquele momento, tornou-se, também, a figura chave, com quem minha mãe poderia contar para aquela perigosa operação incendiária.
Considerando que havia chovido bastante durante a noite, ela confiava no pleno sucesso daquela intervenção cirúrgica "maribúndica" e resolveu queimar os ninhos (o nosso, e o dos marimbondos), usando uma tocha de palha seca de milho, untada em querosene, presa num talo de palmeira.
Creio ser aquilo uma experiência inédita para ela, senhora de orações, muito confiante na providencia divina. Confiava também na humidade da cobertura da casa, como facilitadora do controle das chamas, embora soubesse que, a chuva só havia molhado por fora.
Talvez ela não tenha imaginado que a cera e o mel pudessem imediatamente incrementar a combustão da palha. Este foi o quadro que se desenhou aos nossos olhos espectadores.
Sinhô, bastante solicitado, bem que tentou, por todos os meios possíveis, conter as chamas antes que se propagassem. Procurou apagar o fogo por cima e por baixo da cobertura. Tudo em vão... Estava consumada a grande tragédia e, diante das circunstâncias, não havia mais nada a fazer senão, encarar o problema com os braços e pernas existentes.
Havia apenas duas pessoas adultas (Mãe e Maria) e Sinhô (12/13 anos). Os demais, crianças com menos de oito anos: Cesário, Sinhara, Judite, eu e Socorro, minha sobrinha. Raimunda, provavelmente, já havia se casado e, nesta época, não residia conosco.
A casa não tardou a se extinguir sob a violência das chamas e nosso olhar de pavor. Os paióis de milho e arroz ainda bem que tiveram queimadas apenas as camadas superficiais. Muita coisa foi retirada, depois, do meio da fumaça.
Ao cair da tarde, chegando da cidade, meu pai ainda avistou, ao longe, a fumaça emanando da verde colina. Não sei que pensamento lhe ocorreu. Porem, o mano Antônio, ao ver de perto o que restou, no meio do carvão e da fumaça, exclamou chorando: “Oh Meu Deus!.., queimou-se meu facãozinho!...” Ele era muito cuidadoso com sua ferramenta de trabalho.
Disseram-me que durante a correria para salvar do incêndio o que fosse possível, eu e minha sobrinha Socorro, crianças com 2 a 3 anos, muito atrapalhamos, correndo apavorados para dentro e para fora, atrás das pessoas, naquela maratona maluca de salvamento.
Dizem que alguns moradores da região chegaram a ouvir o barulho do incêndio porem, confundiram-no com zoada de avião e não deram maior importância.
Foi o fim da nossa casa da colina, na beira do lago da Trindade.

Malária na Trindade

O vale do Mearim, pertencente à pré-amazônia, está submetido a clima quente úmido florestal, portanto, muito propício ao desenvolvimento de doenças tropicais, como Malária, Febre Amarela, Doença de Chagas, Leishmaniose e Dengue.

O ambiente escolhido para fixação da residência, rico em umidade e vegetação arbórea, não tardou a manifestar os efeitos de sua insalubridade. Com o passar do tempo, a febre foi minando as forças da família, a ponto de não haver alguém sadio para cuidar dos demais. Com febre, meu pai ia à cidade comprar medicamento para toda a família. Lá mesmo, na farmácia, meu pai ingeria sua amarga dose de um remédio feito à base de quinina, para baixar a febre.

Apesar de tudo, a vida continuou e, dentro de algum tempo, foi construído também um galpão e um engenho de pau, puxado a boi, para moer cana. Plantou-se canaviais e roças de milho, arroz, feijão, mandioca e etc., as lavouras normais de subsistência.

Alguns membros da família não conseguiram suportar aquele embate com o mosquito da malária. Para sobreviverem, tiveram que voltar a residir na cidade.

Chegada à Trindade

Uma casa na colina: Na Trindade, nossa morada primeira foi construída sobre uma colina verdejante, a cerca de um quilômetro do rio Mearim, A casa emergia sobranceira do meio de uma vegetação secundária (capoeira), reminiscência das exuberantes florestas primárias que cobriam a região, num passado não muito remoto. Florestas que haviam sido abatidas pela força do braço escravo, principalmente, para plantação de cana-de-açucar, algodão e pastagem.

Era uma região desabitada e a vegetação ainda, relativamente rica em biodiversidade, com muitos adensamentos de espécies de madeira-de-lei e de palmeira babaçu (Orbignya martiana). A florersta estendia-se pela planície circunvizinha, avançando sobre uma pequena área inundada, o Lago da Trindade. Este, ainda bastante piscoso, era cercado de formações vegetais espinhentas, ricas em marajá (gênero Bactris), além de constitui-se numa importante fonte do mosquito da malária.

A casa era de taipa (paredes de pau-a-pique e varas amarradas com cipó ou fibra vegetal) e chão batido, coberta com palhas de babaçu; construída, provavelmente, entre o final do inverno e início da primavera de 1938, visto que, nascido em abril daquele ano, eu tinha apenas quatro meses de idade, quando ali chegamos.

Nossa família era relativamente numerosa: meu Pai (Zé Bello), minha Mãe (Maria da Conceição), seus oito filhos e dois cunhados (Nezinho e Raimundo Quinco). Os oito filhos compreendiam, em idade decrescente: Maria (casada com Nezinho). Raimunda (noiva ou recém-casada, com Raimundo Quinco).

Sinhô, Antonio, Cesário, Senhara, Judite e Pedro eram crianças ou adolescnetes, com nemos de 14 anos. O mais novo membro da família era a netinha Socorro, filha de Maria, nascida por volta de outubro de 1938.

As atividades de roça tinham início no mês de outubro, com as derrubadas, queimadas e a limpeza do terreno (encoivaramento). Naquela região, ainda hoje, estas operações fazem parte do dia-a-dia dos agricultores.

Experimentado nas lidas da lavoura, meu pai possuía importantes projetos a desenvolver ali. Dentre eles destacavam-se: as plantações tradicionais de milho, arroz, mandioca e feijão e a formação de canaviais para a indústria de açúcar e aguardente, alem do cultivo de pastagem, principalmente, para manutenção do gado leiteiro, dos animais destinados ao trabalho do engenho e ao transporte, em geral, na propriedade.

Plantar tabaco e produzir fumo-de-corda também fazia parte das atividades na Trindade. Quando residia no São Manuel meu pai já compreendeu a importância de produzir e comercializar fumo. E geralmente, vendia sua produção diretamente ao consumidor, para auferir melhores lucros.

(continua...)